Penso que precisamos
desromantizar o amor. Estranho, o amor é uma ideia romântica, por si só, e
talvez essa proposta gere uma sensação de descaracterização do termo. Mas aí é
que tá! A romantização do amor que construímos é extremamente heteronormativa,
sobretudo por ser um amor a duas (ou a dois), e acabam servindo a diversas
estruturas sociais que se tornam invisíveis por uma percepção de que,
por ser uma relação lésbica, não haverá reproduções opressoras. Não sou a
melhor das pessoas pra reivindicar o amor livre, ou o fim das relações
monogâmicas, porque não sei se conseguiria me relacionar de outra forma hoje,
mas venho pensando pacientemente na forma como as relações amorosas – da forma
como somos direcionadas a construir-, por mais importantes que sejam, nos compartimentam.
Não quero, também, dizer que
nenhuma relação agrega, nenhuma relação presta ou que todas elas são abusivas,
porque, inclusive, a maior parte da construção da minha consciência como
mulher, negra, lésbica, se deu no seio de relacionamentos amorosos, abusivos ou
não. A duas (ou a dois), nos construímos grandemente, mas, a depender do
contexto, há um furto de nós mesmas. Furto, porque não percebemos isso durante
o processo, só damos conta depois. Quanto tempo gastamos com as nossas relações
de amor? Quantas pessoas limitam todos os meios onde costumam se relacionar
quando começam a namorar? Quantas coisas a gente precisa mudar pra se
relacionar com cada pessoa que encontramos, nos apaixonamos, nos encantamos?
Isso não é ruim, mudar não é nem um pouco negativo, inclusive é bom, mas
precisamos entender que mudanças são essas e como elas nos ferem, nos mutilam,
nos transformam no ser que é pra o outro, e não pra si.
Eu sou uma virginiana muito
virgem mesmo! Prática, saio com alguma facilidade dos espaços, não tenho muitas
dificuldades pra romper com relações tóxicas, principalmente depois de tantas
experiências negativas, mas vez ou outra
me vi condicionada a comportamentos que não eram meus, que não me faziam bem,
que não agregavam nada de interessante pra minha vida, aliás, me quebravam, me deixavam
tensa, preocupada a todo instante com a reação impensada, com o mal humor
matinal que precisava ser guardado numa caixinha, com a divisão do espaço, com
a desvontade de divisões, de companhia, de abraços, que é tão meu! Estar só é
tão eu. Aqui não falo de solidão, falo de solitude, como me explicou uma amiga
recentemente. Eu demorei tantos anos pra entender que gostava de ficar só, e mesmo
quando percebi, continuei me inserindo em espaços que reduziam a minha
liberdade. Cuidar do outro é necessário, amar o outro é fundamental, mas, antes
de tudo isso, é importante que a saúde mental e o ori estejam muito bem
arrumadinhos. “Não deixe para quando receber visita pra arrumar, varrer,
limpar, perfumar a casa!”. É isso! A casa precisa estar arrumada o tempo
inteiro, senão a gente não dá conta de duas cargas energéticas. E nem é pra dar
conta mesmo. Relação não é, pra mim, dividir tudo. Isso é heteronormativo, é
patriarcal, e cai, se observarmos, no espirito maternal evoluído de nós,
mulheres, que é imposto a todo momento pelos diversos padrões. As
individualidades precisam ser conservadas, tanto em coisas positivas, quanto
negativas, e é aí que está a grande questão! Como construir uma relação com
individualidades? Dialética! Chego sempre nessa palavra, mas ela explica, dá
conta de quase tudo. Autoconhecimento e dialética são fundamentais, mas não são
simples, levam tempo, gastam energias, e nem sempre estamos dispostas a
direcioná-las a isso, ainda mais em tempos como os nossos, onde a variedade de
coisas pra ler, participar e construir é colocado como o principal foco das
nossas vidas.
Vale ressaltar, para fins de
evitar maus entendidos, que individualidade e egoísmo são coisas bem
diferentes, e que cuidar de si não é ser egoísta, não é pregar o individualismo
que o neoliberalismo junto com a globalização nos impõe. Pensar por esse viés é
outra cilada, porque podemos, com alguma facilidade, estar só e com os outros.
É possível amar de diversas formas, inclusive sem, necessariamente, passar por
uma sexualização dos nossos corpos.
Volto, então, a falar sobre a
romantização que citei lá em cima. O amor não muda tudo, não cura tudo, e nem é
suficiente. Precisamos sair desse lugar em que o colocamos como o herói das
relações, porque não é. Mas ele pode ser herói de nós mesmas, quando percebemos
que quase tudo está em nós e só precisa ser despertado. Porque o amor que eu
dou e sinto, está em mim. Assim como a alegria, a tristeza, a raiva, e as
outras emoções. É um pouco clichê, mas sabe aquele “sabe lá o que é não ter e
ter que ter pra dar”, que Dja tanto fala? Se a gente não tem, a gente não dá
direito, de forma irresponsável, o que é ainda pior. Quando compreendemos isso,
saímos do “é impossível ser feliz sozinho” e chegamos no “feliz mesmo é estar
sozinho!”, e isso não é viver sozinho pra sempre, não é não namorar, não casar,
etc etc etc, mas estar, em todos os momentos, consigo. E por falar em coisas
boas da solteirice: até tempo pra escrever, a gente acha. Tudo passa a ser
possível, inclusive não fazer nada. Absolutamente nada, durante um dia inteiro.
Só pra finalizar, o afeto
continua sendo importante, o amor, o cuidado, os tantos abraços, mas precisamos
repensar como estamos por dentro diante de tantas doações. A propósito, se doar
completamente aos outros, não deveria ser um dos mantras em nossas vidas.
Guardemo-nos! Amemo-nos! E tomemos cuidado com os discursos moralistas sobre os
nossos corpos. Ah, e se eu posso dar mais uma dica: more sozinha em algum
momento da sua vida! Não vai existir experiência igual.