quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Dormir na sala

Penso que precisamos desromantizar o amor. Estranho, o amor é uma ideia romântica, por si só, e talvez essa proposta gere uma sensação de descaracterização do termo. Mas aí é que tá! A romantização do amor que construímos é extremamente heteronormativa, sobretudo por ser um amor a duas (ou a dois), e acabam servindo a diversas estruturas sociais que se tornam invisíveis por uma percepção de que, por ser uma relação lésbica, não haverá reproduções opressoras. Não sou a melhor das pessoas pra reivindicar o amor livre, ou o fim das relações monogâmicas, porque não sei se conseguiria me relacionar de outra forma hoje, mas venho pensando pacientemente na forma como as relações amorosas – da forma como somos direcionadas a construir-, por mais importantes que sejam, nos compartimentam.
Não quero, também, dizer que nenhuma relação agrega, nenhuma relação presta ou que todas elas são abusivas, porque, inclusive, a maior parte da construção da minha consciência como mulher, negra, lésbica, se deu no seio de relacionamentos amorosos, abusivos ou não. A duas (ou a dois), nos construímos grandemente, mas, a depender do contexto, há um furto de nós mesmas. Furto, porque não percebemos isso durante o processo, só damos conta depois. Quanto tempo gastamos com as nossas relações de amor? Quantas pessoas limitam todos os meios onde costumam se relacionar quando começam a namorar? Quantas coisas a gente precisa mudar pra se relacionar com cada pessoa que encontramos, nos apaixonamos, nos encantamos? Isso não é ruim, mudar não é nem um pouco negativo, inclusive é bom, mas precisamos entender que mudanças são essas e como elas nos ferem, nos mutilam, nos transformam no ser que é pra o outro, e não pra si.
Eu sou uma virginiana muito virgem mesmo! Prática, saio com alguma facilidade dos espaços, não tenho muitas dificuldades pra romper com relações tóxicas, principalmente depois de tantas experiências negativas, mas vez  ou outra me vi condicionada a comportamentos que não eram meus, que não me faziam bem, que não agregavam nada de interessante pra minha vida, aliás, me quebravam, me deixavam tensa, preocupada a todo instante com a reação impensada, com o mal humor matinal que precisava ser guardado numa caixinha, com a divisão do espaço, com a desvontade de divisões, de companhia, de abraços, que é tão meu! Estar só é tão eu. Aqui não falo de solidão, falo de solitude, como me explicou uma amiga recentemente. Eu demorei tantos anos pra entender que gostava de ficar só, e mesmo quando percebi, continuei me inserindo em espaços que reduziam a minha liberdade. Cuidar do outro é necessário, amar o outro é fundamental, mas, antes de tudo isso, é importante que a saúde mental e o ori estejam muito bem arrumadinhos. “Não deixe para quando receber visita pra arrumar, varrer, limpar, perfumar a casa!”. É isso! A casa precisa estar arrumada o tempo inteiro, senão a gente não dá conta de duas cargas energéticas. E nem é pra dar conta mesmo. Relação não é, pra mim, dividir tudo. Isso é heteronormativo, é patriarcal, e cai, se observarmos, no espirito maternal evoluído de nós, mulheres, que é imposto a todo momento pelos diversos padrões. As individualidades precisam ser conservadas, tanto em coisas positivas, quanto negativas, e é aí que está a grande questão! Como construir uma relação com individualidades? Dialética! Chego sempre nessa palavra, mas ela explica, dá conta de quase tudo. Autoconhecimento e dialética são fundamentais, mas não são simples, levam tempo, gastam energias, e nem sempre estamos dispostas a direcioná-las a isso, ainda mais em tempos como os nossos, onde a variedade de coisas pra ler, participar e construir é colocado como o principal foco das nossas vidas.
Vale ressaltar, para fins de evitar maus entendidos, que individualidade e egoísmo são coisas bem diferentes, e que cuidar de si não é ser egoísta, não é pregar o individualismo que o neoliberalismo junto com a globalização nos impõe. Pensar por esse viés é outra cilada, porque podemos, com alguma facilidade, estar só e com os outros. É possível amar de diversas formas, inclusive sem, necessariamente, passar por uma sexualização dos nossos corpos.
Volto, então, a falar sobre a romantização que citei lá em cima. O amor não muda tudo, não cura tudo, e nem é suficiente. Precisamos sair desse lugar em que o colocamos como o herói das relações, porque não é. Mas ele pode ser herói de nós mesmas, quando percebemos que quase tudo está em nós e só precisa ser despertado. Porque o amor que eu dou e sinto, está em mim. Assim como a alegria, a tristeza, a raiva, e as outras emoções. É um pouco clichê, mas sabe aquele “sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar”, que Dja tanto fala? Se a gente não tem, a gente não dá direito, de forma irresponsável, o que é ainda pior. Quando compreendemos isso, saímos do “é impossível ser feliz sozinho” e chegamos no “feliz mesmo é estar sozinho!”, e isso não é viver sozinho pra sempre, não é não namorar, não casar, etc etc etc, mas estar, em todos os momentos, consigo. E por falar em coisas boas da solteirice: até tempo pra escrever, a gente acha. Tudo passa a ser possível, inclusive não fazer nada. Absolutamente nada, durante um dia inteiro.

Só pra finalizar, o afeto continua sendo importante, o amor, o cuidado, os tantos abraços, mas precisamos repensar como estamos por dentro diante de tantas doações. A propósito, se doar completamente aos outros, não deveria ser um dos mantras em nossas vidas. Guardemo-nos! Amemo-nos! E tomemos cuidado com os discursos moralistas sobre os nossos corpos. Ah, e se eu posso dar mais uma dica: more sozinha em algum momento da sua vida! Não vai existir experiência igual.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Dores no peito

Dores no peito, náuseas, secura nos olhos. Um turbilhão de coisas se passando pela cabeça e, das piores, insônia. Parece que estou parindo um filho de tanta dor que me invade a alma agora. Ao mesmo tempo que dói, já não sinto nada. Nem pena, nem sede, nem compaixão.
Li uma vez que entre os sentimentos valiosos para o ser humano, a compaixão é um dos principais. Eu não tenho mais. Não tenho mais nada. As coisas vão se perdendo de um jeito e de outro e ao mesmo tempo que ganho a vida, te perco. Perco as madeixas, o sorriso, os cds do Gilberto Gil. Merda! Eu queria tanto o “Refazenda”, é o meu preferido e você destruiu. Sem querer ser fútil, mas no momento é uma das coisas que mais tem me incomodado, porque eu não sinto nada. Sequer estou me importando com o que pensaria ao me ler. Ah, qual é, você nunca soube ler o que tinha em mim. O que meu corpo, meu sexo, minha boca pedia; e nem nos momentos mais explícitos você sabia o que fazer com o que tinha nas mãos, no corpo.
Depois de três dias e noites vendo seriados bobos e decidindo o meu posicionamento diante da adoção ou não de fotos coloridas na página da rede social em meio à doze, treze, quatorze horas de sono, eu tenho insônia. Foi só o seu nome aparecer na boca de um idiota qualquer que me cumprimentou na rua que eu não consigo dormir, e me pergunto: eu esgotei a quota de sono da semana ou eu sou uma filha da puta idiota que se comove com qualquer notícia de um escroto que pouco se importa se morro ou vivo agora? Fico com a segunda opção.
Mas voltando ao início da história, estávamos bem. Mentira. Nunca estivemos bem, achávamos, imaginávamos, devaneávamos sobre uma relação que poderia dar certo um dia, mas isso nunca foi verdade, e a gente sabe desde o caso da pizza e da mordida no dedo que está tudo errado. Dois narcisistas nunca se dariam bem numa relação monogâmica, principalmente quando uma das partes sequer acredita em relação monogâmica. Qual a finalidade de se enquadrar mesmo em toda essa merda que inventam? É falido. Mas, ainda assim, estávamos bem. Eis que um germe é plantado com o incremento do uso das tecnologias (Milton Santos que o diga) e as pessoas passam a se olhar assustadas. Eu, baby, e você, não nos bastávamos. O amor não é suficiente, isso já virou um clichê. Escândalos, famílias, agressões que não cabiam em verbos e em palavras chulas ultrapassam os limites e eis ai um grand finalle. O que resta de nós e a amargura e o medo do outro, dos nomes, encontros em bares dessa cidade medíocre e pobre. Eu não faço mais parte disso, e nem você.
Até ontem jurávamos amor eterno e uma série de divisões no nosso apartamento. Eu queria o meu quarto individual, brega aos seus olhos e, aos meus, cafofado, cheio de penduricalhos, recortes na parede e cds, livros e filmes espalhados por todo canto. Eu como isso. O seu, simples, com uma cama e guarda-roupas. Detesto essa maneira simplista de ver a vida. Pode ser tudo tão colorido, retalhado, reciclado e você me joga fora. Acreditei por exatas vinte e oito horas que estava tudo acertado e você me veio com choros, vinhos e uma série de argumentos pra mais uma tentativa numa relação que, como painho diz, nunca daria certo e eu, inteligente, universitária, pesquisadora, professora e idiota que sou, aceitei. Acho que as musicas de Djavan estão penetrando os meus miolos e eu estou enlouquecendo. É isso. Não existe mais sanidade em mim. Eu simplesmente enlouqueci e desta vez não foi por você, foi por uma relação fantasiosa, que nunca existiu pra ninguém além da minha irmã que te chama de tio e mata formigas avisando que não pode matar abelhas, já que você ensinou.
Neste exato momento não existe mais raiva e eu tenho medo disso. Enquanto ela existia eu tinha certeza que você iria voltar atrás, pedir desculpas e dizer que o amor ainda pode recuperar alguns estragos, mas eu não sinto nada. Nem fisicamente. Sinto até falta daquela dor que dá no peito que a gente sente feito agulha enfiada entre unha e carne no dedo, e, não, ela não está aqui agora.

Me libertei desse amor doentio, desse abuso, desse sexo com culpa, dessa falta de cuidado exacerbada e, sobretudo, do medo que eu tinha de te perder. Eu nunca tive você nem ninguém. Eu não tenho mais medo porque talvez o amor tenha se transformado apenas num bem-querer. Ou até mesmo eu só queira que você se foda e se afaste de mim como eu faço com os ratos que passeiam na calçada do meu trabalho. Não me importa. O que interessa agora é estar liberta de algo que durante uma vida de tempo útil, foi transformada em submissão não consentida, mas, pasme: eu não me culpo por nada. E eu que sou a escrota.